FASCÍNIO PELO CÓSMICO FATÍDICO DE ALGUNS ANJOS


 

AO GOSTO DOS ANJOS VI  

 “ Breve consideração sobre uma biografia”

 

 

Em 22 de junho de 1914, nestas terras de Leopoldina, pisa Dr. Augusto dos Anjos que, por intermédio e influência de seu concunhado Dr. Rômulo Pacheco, obteve junto ao Dr. Ribeiro Junqueira, nomeação para o cargo de diretor do Grupo Escolar local.

Em 24 de junho, após se instalar no chalé à rua Cotegipe número 11, toma posse no cargo de diretor do Grupo Ribeiro Junqueira, para o qual fora nomeado, com o pequeno salário mensal de trezentos e trinta mil réis.

De imediato pôde constatar o precário estado do velho estabelecimento escolar e a insuficiência de acomodações, logo representando e informando junto ao governo do Estado de Minas e atestando a urgente necessidade da construção de um novo grupo.

À época, com um índice de evasão escolar considerável, constatou-se que a razão da baixa frequência era devido ao fato de que os alunos, pobres que eram, não possuíam roupas ou materiais para frequentarem as aulas.

Assim, providências foram tomadas, reunindo-se a sociedade local para reorganização do caixa escolar e constituição de nova diretoria. Em pouco tempo as modificações e providências repercutem positivamente.

Para melhorar sua renda Augusto dos Anjos publica anúncio onde passa a oferecer explicações e aulas particulares de Português, Francês, Latim, Aritmética, Álgebra, Geografia, História, Ciências físicas e naturais.

Entre outros alunos, Dr. Abrahão Chede, dr. José Gomes Domingues, o contador Miltom Ovídio de Lima e dr. Juvenal Carneiro.

Humberto Nóbrega, médico paraibano, membro da APL, escritor, historiador e pesquisador, um dos maiores biógrafos de Augusto dos Anjos, nos traz um relato onde supõe ser bem provável que Dr. Abraão Chede, meu querido tio avô, tenha sido tentado a adquirir aquele chalé, onde o poeta viveu os últimos dias, à rua Cotegipe 386, como demonstração de admiração e consideração, com o que concordo plenamente, e o fez, adquirindo-o das mãos do Capitão Gastão Ferreira Britto, em 1935.  

 Dr. Abrahão fê-lo acima da consideração de investimento com expectativa de retorno material, com certeza, fê-lo motivado pelo apreço e reverência, em homenagem a quem tanto admirava e a quem tanto devia sua formação moral (tal imóvel, mais tarde, caiu em mãos de um herdeiro usurário, avaro e ganancioso; não fosse a ação do poder público, “tombamento e desapropriação” já teria sido demolido).

 Dr. Abrahão tinha especial veneração pela original e singular poesia de Augusto dos Anjos, que citava em discursos, sustentações e palestras, recitava com frequência diversos sonetos do poeta. Sempre visitava o “velho” túmulo de Augusto, onde fazia orações por sua alma, ainda se fazia acompanhar e orientar aqueles visitantes que desejassem conhecer o chalé onde o poeta morou e o humilde túmulo do poeta.

Em 1964, por iniciativa do conselho Nacional de Cultura, (governo João Goulart), a Caravana da Cultura, tendo à frente Pascoal Carlos Magno, marca sua passagem por Leopoldina com eventos diversos. Financiado pelo Conselho, foi então erguido um belo Mausoléu para acolher com dignidade os restos mortais do poeta. A belíssima obra de arte, estátua em mármore de Carrara representando a deusa Calíope, a mais velha e sábia das nove filhas de Zeus, considerada Musa da poesia épica, da eloquência e da ciência, trazendo em uma das mãos uma significativa coroa de louros e ostentando um altivo olhar para a eternidade, em reconhecimento e justa homenagem à memória de Augusto dos Anjos.

Minha tia avó, Maria Abrahão, irmã de Dr. Abrahão, após a morte do poeta, também fora aluna de d. Ester Fialho, a viúva, por quem nutria sentimento de gratidão e grande estima. Mais tarde, em 1983, com a criação do projeto “Espaço dos Anjos”, por Luiz Raphael Domingues Rosa, “o pintor da memória da cidade”, minha tia Maria, com amizade e espírito altruísta, prestou sua parcela de apoio à manutenção e preservação daquele espaço, promovendo reformas necessárias e reparos, mantendo um aluguel simbólico, até bem módico, sem abuso ou avultado. (O poder público nunca isentou taxas e IPTU).  

Lembro-me que Raphael costumava dizer que era o mordomo de Augusto dos Anjos mas era recíproco, ambos se serviam. Quem se envolve com o espólio poético e metafísico de Augusto dos Anjos absorve um misterioso e magnético fascínio pelo fatídico.

O Almanaque do Arrebol, projeto que nasceu junto, à mesma época, também tinha como principal bandeira a preservação de nossa Memória.

Segundo relato de Humberto Nóbrega, o cônego Ribeiro Leitão, leopoldinense, notório professor de Teologia e Direito, Reitor do Seminário N. S. Aparecida em Leopoldina, narra o depoimento de Dr. Abrahão sobre uma passagem relacionada com Augusto dos Anjos quando de sua direção do Grupo Escolar Ribeiro Junqueira:

”O diretor que o antecedera (a Augusto) era um homem ríspido e bilioso. A ideia de diretor naturalmente se associou à ideia de tipo indesejável.  Veio Augusto. Os meninos se admiravam: como era diferente o novo Diretor.

Um dia houve uma briga comum.

Dr. Abrahão estava no meio. Foram chamados à diretoria. Augusto perguntou por que haviam brigado. Coisa de somenos, bolas de gude.

Após ouvir as razões de um e de outro, separadamente, chamou os dois brigões e fê-los se abraçarem dizendo-lhes: “aqui vocês são irmãos, eu os quero como pai, e por isso tenho a certeza doravante saberão viver bem”.

Olhou o relógio.

As turmas já haviam entrado para as salas. Disse então aos dois: “Como vocês dois perderam alguns minutos do recreio para virem conversar comigo, podem ir ao pátio jogar gude mais um pouquinho.

Desnecessário concluir --- disse-me Dr. Abrahão--- foi a minha última briga no Grupo”.

Em outra ocasião, Barroso Júnior conta que “uma vez fora levado à presença do diretor do Grupo Ribeiro Junqueira um dos meninos mais travessos. Estava Augusto dos Anjos na diretoria carinhosamente repreendendo o aluno insubordinado, quando entra pela sala a dentro sua auxiliar de disciplina. Ao vê-los assim, diretor e aluno, tão calmamente palestrando, não se conteve a senhora:

- Dr. Augusto, assim não vai. Esses meninos precisam de arrancos. Eles zombam de nós.

Augusto dos Anjos fez sair o aluno relapso, e depois, com aquela doçura e modo de falar que lhe eram peculiares, disse à professora: “Dona Brígida, se fora preciso mais do que palavras para manter minha autoridade, pediria demissão”.

- O biógrafo Humberto Nobrega faz ainda uma revelação, um relato hipotético, sobre a história de amor proibido e frustrado de Augusto dos Anjos pela “moça da Serra da Borborema”, talvez, uma interpretação alegórica do soneto “A Árvore da Serra”, onde o pai, que simboliza o poder e autoridade da família, quer cortar a árvore que não possui alma e que simboliza a mulher amada, confronta o filho, que se opõe em súplicas.

No soneto citado, a tragédia Shakespeariana me vem à lembrança; cotejando a estrofe final, tenho a impressão de intertextualidade implícita, alusiva à Romeu e Julieta: “A árvore, ao cair sob os golpes do machado, o moço triste e desiludido se abraçando ao tronco, nunca mais se levantou da terra”.

Será essa desilusão a razão da profunda depressão e tristeza de Augusto dos Anjos? A perda do amor de sua vida? A mágoa, a tristeza mórbida que o acompanharia durante toda sua caminhada?

Não há fatos biográficos que comprovem que essa tragédia tenha realmente acontecido, pode apenas se tratar de interpretação filosófica que transcende o texto literal, mas, se ocorreu, não é de se supor que tal fato perdurasse tanto que não pudesse ser superado, e ou que lograsse deixar tamanhas e dolorosas cicatrizes na psique e no espírito do poeta a ponto de influenciar em seu modo subjetivo de sentir o mundo, talvez sim.

Na quarta estrofe do soneto “Eterna Mágoa”, o poeta afirma que a “praga da tristeza” é transcendente e atemporal e que o acompanha durante toda a existência, “nada há que traga consolo à sua Mágoa” e, quando a vida conclui seu ciclo: “, é essa mágoa que o acompanha ainda”.

- Será o dogma da culpa que se carrega por ser nascido fruto do “Pecado Original”, que não pode ser expiado, mas sim, perdoado pelo método inquisitório da confissão, mediante o arrependimento explícito e a penitência?

 É certo que Augusto dos Anjos recebeu forte influência do filósofo alemão Schopenhauer, para quem o sofrimento é intrínseco à vida; a felicidade é ilusão, definida pela ausência de dor ou prazer e o pessimismo à real natureza da existência. Podemos então inferir que essa influência negativa tenha exercido tamanha implicação em sua psique a ponto de moldar sua natureza íntima?

                                

 

Enfim, o que importa é que esses depoimentos colhidos em Leopoldina exprimem, sem dúvida, o espírito em paz de um homem alegre e feliz, um dos poucos depoimentos otimistas acerca de seu caráter, afinal era um novo ciclo que se iniciava.

A cidade de Leopoldina o acolhera de braços abertos, estava feliz, fato que pode ser evidenciado nas cartas enviadas por D. Esther à sua mãe Sinhá Mocinha: “Ninguém pode imaginar o grau de amizade e de simpatia em que o Augusto era tido aqui, com tão poucos meses de residência nesta cidade”... “As menores e mais pobres crianças do grupo vinham saber se o dr. Augusto estava melhor. Muitas entravam e ficavam perto da cama, olhando; ele ria para todas”. Cartas publicadas pelo biógrafo Humberto Nóbrega -“Augusto dos Anjos e sua Época”.

Guilherme Fialho Augusto dos Anjos, em entrevista concedida a mim em 1984, (gravação em áudio e outros manuscritos relacionados com Augusto dos Anjos foram recentemente doados ao Espaço) durante celebrações do centenário de nascimento do poeta, deixa evidente o enorme sentimento de gratidão manifestado pela viúva D. Esther Fialho e pelos filhos, principalmente após a morte prematura de Augusto dos Anjos, quando foram acolhidos com carinho, solidariedade e conforto material e espiritual, pela comunidade local. Esse fato, muito provavelmente, influenciou, e repercutiu, na negativa do traslado de seus despojos mortais pleiteados pela Paraíba, conforme atesta o documento firmado e lavrado em 1977, cartório do 15º ofício – RJ.

 

Prudência e lucidez, virtudes de Augusto dos Anjos como professor, educador e ser humano, significativos momentos que evidenciam um estado emocional de autoestima elevada, alegria e paz interior, contrapondo ao estigma que se lhe atribui, à sua negativa imagem pré-concebida de pessimismo. Belo e raro relato biográfico de sua breve e venturosa passagem por Leopoldina.

 

               Elias Abrahim Neto

 

12 de novembro de 2025

 

Aos 111 anos de seu falecimento

 

        Fontes:

 * O texto que se refere à chegada de Augusto dos Anjos à cidade: “Leopoldina de Outrora” - Luiz Eugênio Botelho – 1963.

 * Entrevista e depoimento de Guilherme Fialho Augusto dos Anjos, cedidas ao Almanaque do Arrebol, em 1984.

  *Os textos que relatam passagens de Augusto dos Anjos em Leopoldina foram extraídos da obra: “Augusto dos Anjos e sua Época” de Humberto Nóbrega, UFP,1962.

 

                                                                     *

- Não fosse eu tão jovem, voltado para outros assuntos, quem sabe poderia ter colhido muito mais informações e esclarecimentos referentes à biografia de Augusto dos Anjos e à sua estada na cidade. Tio Abrahão, internado na Casa de Caridade, já na fase final de sua vida, quando a doença exigia doses cada vez maiores de morfina, e abandonado pela lucidez, era acompanhado por mim e meus cuidados em seu leito. Entediado, sem conversar, e não ter o que então fazer, senão refletir sobre a condição humana, coloquei-me a ocupar o tempo desenhando. Foi quando então retratei em grafite, o velho tio deitado em letargia, com toda aflição que a letal enfermidade lhe causava.

 


 

 

 

 

 

 

Por ocasião do centenário de falecimento de 
Augusto dos Anjos.

 

 

 Abaixo trechos de troca de mensagens entre Alexei Bueno e eu, Elias, onde Alexei tece críticas e considerações  sobre o texto acima .

 

-  O seu texto é ótimo, e traz detalhes importantes sobre a já mais do que centenária relação entre Leopoldina e Augusto dos Anjos.

Sobre a pretensa história da "moça da Serra da Borborema", não dou um tostão por ela, como, aliás, deixei entrever na minha recente palestra aí.

Em relação a Humberto Nóbrega, teve em mãos o maior acervo documental sobre Augusto dos Anjos,...reproduziu nem sei quantos textos retirados de periódicos sem registrar a data de NENHUM, o que é quase inacreditável.

...e eu é que sei a epopeia que foi para mim reencontrar essa cronologia!

Uma curiosidade: de onde veio a informação de que a muito bela estátua que, graças ao Pascoal Carlos Magno, encima o segundo túmulo do Augusto dos Anjos representa Calíope? Em tese, pode até ser, mas tem muito pouco da iconografia tradicional das musas, como tem pouco ar pagão, isto realmente me deixou curioso.

Parabéns pelo texto, grande abraço!

 

-Salve, caro Alexei. Que boa surpresa receber estas palavras de consideração ao pequeno e modesto texto que submetí ao seu crivo.

 Hoje em dia temos de ser muito cuidadosos no que tange à ausência de critérios cronológicos de datação, à fonte origem de informações, autorias, compilações ou citações, ou corremos o risco de confundir, suscitar dúvidas, ou lançar névoas sobre a verdade...

Não faço ideia de onde foi que saiu a tal história ou lenda, se é que assim pode ser chamada, "A moça da serra da Borborema", mas, posso afirmar a você que tal serviu a meu propósito, a interpretação no sentido de afirmação de amor frustrado e não consumado e suas implicações psicológicas na alma do poeta.

Alguém, de cujo nome não me recordo, disse-me certa vez que a bela estátua de mármore no túmulo de nosso querido poeta Augusto dos Anjos seria a representação da "Glória" como personagem mitológico romano, mas tanto gregos como romanos idealizavam e relacionavam com a Glória seus deuses, também semideuses ou heróis. Mas o objetivo almejado, para afirmar minhas proposições, sem que essas prejudicassem a finalidade, suponho ter conseguido. 

Quanto a sua curiosidade acerca da informação da denominação da estátua de “Calíope” do mausoléu, tal informação foi colhida no livro “Leopoldina de Outrora” -1963 -de Luis Eugênio Botelho, (patrono da Biblioteca Municipal de Leopoldina) no capítulo referente a Augusto dos Anjos. Espero ter esclarecido à luz dos fatos e de fontes por mim pesquisados.

Você, creio, sabe e sofre com os erros de revisão.

Uma curiosidade, na obra de Luiz Eugênio, no capítulo dedicado a Augusto dos Anjos, consta a errônea afirmação de que ele teria morrido aos 76 anos. Acredito ter sido um descuido.

Abraço ao amigo

 

-Muito obrigado, Elias!

A estátua do túmulo segura uma coroa de flores - creio eu - na mão esquerda, pode até ser uma representação da Glória, Calíope é que não é, nem qualquer outra das nove musas. Nunca vi uma só musa representada com véu, e não vi poucas. A expressão, o olhar voltado para o alto, tudo, é do estilo de estatuária cristã, não pagã, e também próximo do estilo da escultura cemiterial italiana, a melhor do mundo. De qualquer maneira, não é uma figura do paganismo, e o que importa é que o túmulo ficou lindo. Essa gralha dos 76 anos é de doer (referindo-se ao grosseiro erro de revisão no livro de Luiz Eugênio Botelho, o correto é: Augusto dos Anjos faleceu aos “30 anos” de idade...) se o autor fosse japonês cometeria harakiri!

Obrigadíssimo pelo texto e pelas informações, Elias. Estou sempre a seu dispor, e espero que nos reencontremos em breve.

Grande abraço!

 


 

 

 

 

 

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