FUNCHAL


       Era  março de 1983 quando Flávio Reis e eu visitamos Dr. Irineu Lisboa em sua residência , na época com 89 anos de idade. Queríamos que ele nos falasse um pouco de seu convívio com o amigo Funchal Garcia. Fomos recebidos com a sua costumeira cordialidade, o bom humor de sempre, ao lado de sua dileta esposa dona Cinira, ocasião em que nos disse: - Todos os companheiros  de folia já se  foram, só resta eu. Qualquer dia chega a minha vez.
        Como resultado dessa visita, colhemos o depoimento que se segue, dados biográficos de Funchal Garcia e o relato de como a dupla Funchal e Lisboa se estabeleceu na animação dos carnavais e 
festas. Desde 1931, saíam pelas ruas  Leopoldinenses, durante os festejos  carnavalescos,               apresentando diversos números caricatos, sempre abordando a temática contemporânea, históricas ou polêmicas, algumas das quais abaixo citadas, mais ou menos em ordem cronológica, com seus        devidos registros fotográficos.                                                                                                            
Infelizmente, alguns se perderam com o tempo.                                                                       
      Nesta oportunidade, queremos agradecer a Terezinha de Jesus Meneghite, pela adaptação do texto, originalmente publicados na Revista Opção Cultural e na Gazeta de Leopoldina,  ao filho do Dr. Lisboa, o também médico Doutor Antônio Márcio Lisboa,membro da ALLA(Academia Leopoldinense de Letras e Artes), pelas fotos, ao amigo Henrique Frade e ao Museu da Força e Luz pelas fotos do interior da casa do grande  Funchal Garcia, acrescidos do acervo do Almanaque.                            
     Segue também o texto escrito pela respeitável professora  Maria José Garcia, sobrinha do mestre Funchal Garcia, membro da ALLA(Academia  Leopoldinense de Letras e Artes), que muito               gentilmente atendeu a nosso convite para prestar esta homenagem. Professora Zezé Garcia, como      carinhosamente é tratada por colegas e  ex-alunos, foi grande colaboradora da revista Almanaque.    
A dupla Funchal Garcia e Dr. Lisboa atuaram por mais de 40 anos nos festejos de Momo.       
Agora é só curtir!
Elias Abrahim Neto


          Funchal Garcia, nascido em Carangola, mas leopoldinense de coração, na mocidade lutara muito, vendendo pão pelas roças para sustentar sua velha mãe viúva,D. Mariana,  e seus irmãos menores, com inteligência, força de vontade e perseverança; ora a pé, ora a cavalo, saía pela madrugada, com uma cesta nas costas, voltando com o dinheirinho, frango,  ovos e rapaduras. Tinha apenas o curso primário de Grupo Escolar.Chegou a ser professor, ator, escritor, e pintor.E foi em Leopoldina que  conheceu seu  maior amigo, Dr. Irineu Lisboa, que lhe prestou uma homenagem cheia  saudades, falando de suas vidas de companheirismo.
Ilustração Irineu Lisboa
          Em uma ocasião, querendo  escrever para a revista Opção Cultural, fui até a presença de Dr. Lisboa para colher seu depoimento para o texto que eu tinha em mente: “Reminiscências do Carnaval em Leopoldina. A dupla Funchal e Lisboa, 40 anos de carnaval.”
           Então, dessa conversa, transcrevo o depoimento emocionante desse médico radiologista e sanitarista que tanto abrilhantou nossos carnavais e tão humanamente exerceu seu ofício na medicina, tendo como seu companheiro inseparável  Funchal Garcia.
            _   Doutor Lisboa, sabendo que o senhor foi um dos grandes foliões do carnaval de Leopoldina desejava que dissesse alguma coisa sobre o senhor e Funchal Garcia.
     _Caro Elias, meu carnaval começou lá pela década de (19)30, quando conheci  Funchal Garcia, na festa em comemoração do centenário de Leopoldina .Nossa estreia foi no animado e concorrido baile no Clube Leopoldina, onde comparecemos em trajes a rigor, eu como Barão de São Mateus, Funchal, o  Marquês de Caparaó(no salão fomos agarrados por uma linda moça. Funchal pelo braço esquerdo e eu pelo braço direito. Desconfiados nos entreolhávamos: “ Que será que esta moça quer de nós, já idosos?” Pedimos licença  e descemos as escadas em direção à rua. Ela nos acompanhou e fez o convite: “ Vamos para Argirita?” Agradecemos e nos desculpamos pela recusa. Curiosos então perguntamos a um rapaz que estava no bar: “ Quem é esta moça?” Ele, rindo: “ É o Pompílio !” Que logro!...) . Daí em diante nos tornamos os maiores foliões da cidade, durante uns 43 anos.
          Tínhamos o mesmo temperamento artístico e arteiro. Depois de trocarmos ideias, fundamos a dupla  Funchal e Lisboa, que alegrou a Cidade com variados números  durante quarenta anos. O ateliê era em minha casa onde tínhamos a indumentária para caracterização: cabeleira, narizes, óculos, chapéus, carecas, roupas, vestidos e pastas de cores.Era uma desordem nesses dias, até as empregadas cooperavam para o bom desempenho dos nossos papéis.
          Preferíamos o Carnaval de rua, pilheriando com os conhecidos, proporcionando alegria a todos, nunca ofendendo; tanto assim que até as Irmãs da Casa de Caridade gostavam das nossas inofensivas brincadeiras; visitávamos os enfermos e os velhos; como também algumas famílias amigas que davam boas  risadas com as nossas bobagens.
          De vez em quando tomávamos uma cervejinha e assim varávamos a noite. Em alguns dos nossos números tomaram parte Elisinha Gama, Zé Bandido, Cici Berbari, Tufic e o Décio. Os números eram bolados por mim e  Funchal.
     Fizemos diversos números, motivados sempre pelos principais acontecimentos da época. Os números eram acompanhados com nossos comentários, diálogos com o povo.
          Eis os títulos dos números:
Concurso de Robustez Infantil_ 1931( baseado em um concurso realizado no Centro de Saúde de cuja comissão de julgamento fazia parte Dr. Custódio Junqueira e Dr. Jairo Salgado, em que o resultado não agradou a todos. Fizemos uma autocrítica, onde Funchal era a mãe com avantajados seios, que dizia que a filha tinha sido criada com leite materno, no caso eu, Lisboa, de camisola e chupeta, e segurava uma fraldinha,contendo "fezes" querendo provar publicamente o acerto da classificação de primeiro lugar de sua nenê.);
A Banda Alemã;
os Mendigos;
 Dom Quixote e Sancho Pança(a cavalo);
 Coronel Jacinto Paixão com sua mulher Maria Imaculada;
 Velhice transviada;
 Rumo a Brasília;
Centenário de Leopoldina _1861-1961( comemorado com festas e um  concorrido   baile no Clube Leopoldina. Funchal e eu    rigorosamente fantasiados com traje a rigor: fraque, cartola e condecorações com o tempo do império.);
 Transplante de Coração( Neste número tomaram parte Funchal e eu como os médicos Barnal e o Zebrinha, Tufi como enfermeiro e anestesista munidos de suas ferramentas: facão , serrote e martelo. Ceci Berbari era o paciente, já um tanto alcoolizado. Arranjamos na Serraria  uma carreta. O desfile dos carnavalescos era em frente ao Fórum onde estavam as autoridades. Não faltava quem empurrasse a tal carreta, onde Ceci Berbari estava espichado. Mandamos confeccionar um coração de pano vermelho, com um cavanhaque na ponta. Os operadores resolveram colocar esse coração de bode e essa intervenção foi feita com toda  a técnica. Fomos até a praça General Osório e de lá voltamos para o mesmo local para dar o resultado da operação,  pedindo ao próprio paciente para falar ao público como se sentia.Ele se levantou e aos gritos: bééééé......);
 Cobertura do Carnaval de Leopoldina;
 Guerra ao Mosquito(instrutivo);
 Sultão de kHk  com Rajah de Kutucalá;
 Os Bebês Chorões;
 O Português e a Crioula;
 Casamento na TV;
 Lampião e Maria Bonita;
 Buzina do Chacrinha;
 Fred e Carequinha;
A  Escola de Samba Princesa Izabel( Organizada por Luiz Gonzaga, foi a melhor do ano. A linha de frente toda de branco, fraque, cartola, bengala, saldando o público.A bateria muito aplaudida. No carro alegórico, belas garotas com fantasias luxuosas.).    
          Temos no nosso arquivo fotografias com as caracterizações citadas,que nos trazem saudades e recordações.
               Em nossa casa também tínhamos um quarto reservado para o Funchal, com tabuleta na porta “Apartamento do Funchal”. Nele nos fantasiávamos para o carnaval.
           Eu era o único médico radiologista da cidade. Certa vez, fantasiado de palhaço, na maior orgia no Clube Leopoldina, fui chamado com urgência ao hospital, para atender a um acidentado. Não havia tempo para me desfazer da fantasia e fui correndo para o hospital. Lá me deparei com um rapaz gritando de dores, o qual me encarou assustado. Pode ter pensado: “ Poxa !  Chamei um médico e veio um palhaço...” Fiquei com a consciência tranquila, pois desempenhei o meu dever.         
          A vocação de Funchal Garcia era a pintura. Começou pintando paredes e fazendo garatujas. Devido a sua memória prodigiosa, inteligência, força de vontade e boa prosa, desenvolvia relações , procurando sempre melhorar seus conhecimentos, aproximando-se de homens cultos e de pintores consagrados, tornando-se assim grande pintor, escritor, ator e professor, elogiado e muito admirado no Brasil.
          Dentre suas numerosas telas, destaca-se a do Pontão da Bandeira , premiada na Exposição da América do Norte.
          Foi membro da Academia Mineira de Letras e da Academia Valenciana de Letras.
           Como professor de desenho, lecionou no Ginásio Carangolense, Ginásio Leopoldinense e Escola do Rio de Janeiro em Madureira.
          Como ator representou várias peças teatrais, inclusive atendia a convites junto com companheiros de teatro, para representar a Ceia dos Cardeais , em festas beneficentes de diversas cidades.
          Está na Praça Félix Martins o mural de sua concepção: lenda da fundação do arraial de Leopoldina – Feijão Cru.
          Como escritor publicou: Memórias de Ivan Trigal; Retalhos de minha vida; Cachimbo  Cachaça Verdade e Fumaça; Ladrão por Esporte . Era apaixonado por “Os Sertões” de Euclides da Cunha, chegando a declamar de cor páginas inteiras.
     De espírito aventureiro, encasquetou-se  de conhecer o Nordeste,  o palco da Guerra dos Canudos, a região, seu povo e costumes. Isso ele realizou por etapas, a cavalo, de trem e de carona. Colheu coisas interessantes entre os raros remanescentes da Guerra de Canudos, pintou lindas telas e escreveu interessante livro: “ Do litoral ao sertão”. O mesmo aconteceu com  o evento Bandeira de Fernão Dias, orientado por documentos históricos, fez o mesmo roteiro de Fernão   Dias, desde   São Paulo à Serra Resplandecente, sem auxílio, aproveitando  a  folga das férias. Sobre essa viagem fez várias conferências.
            Funchal era um mão aberta.Seu dinheiro era dos amigos e da pobreza, nunca conseguiu ter uma casa própria.
             Aí  vocês tem uma síntese da personalidade do Funchal, merecedor de nossa admiração.
             Funchal faleceu aos 90 anos de idade em Marechal Hermes, Rio de Janeiro.                                                                                                                                 


              Fotografias  de algumas caracterizações  


Barão de São Mateus e Marquês de Caparaó



Concurso Robustez Infantil - 1931
O Português e a Crioula

A Banda Alemã


D. Quixote

Sancho Pança
         
                                                            

Os Matutos

Vaqueiros




Os Mendingos


Carequinha e Fred


Carnaval de 1969 com  Tufic



Sultão  de khk com Rajah e Kutucalá




                                                        A SAGA DE  UM SONHADOR

       
                                                        Acadêmica - Maria José Ladeira Garcia

Sr.Antonio e D. Mariana - pais de Funchal
          Há pessoas que ficam eternizadas em nossos corações por terem grandeza de alma.. Manoel Funchal Garcia é uma delas por ter sido o amante da liberdade e das causas nobres. Contrário às opressões e ao institucionalizado, Funchal possuía um coração puro e gostava de alçar vôos por esse Brasil afora, pintando ou escrevendo. Seu grande objetivo era retratar o país e a alma do povo simples que, para ele, era a essência da Nação.
          Viveu da pintura e com seus quadros educou a família. Apesar e seus noventa anos, sempre se considerava jovem, pois sabia se renovar, renascer todos os dias, embora o tempo fosse-lhe cansando o corpo, mas jamais vencia-lhe a alma.   A impetuosidade juvenil, os sonhos e aspirações de um eterno amante da vida fizeram-no atravessar o tempo sem nunca perder a pureza o coração que era maior que o mundo em solidariedade e honradez.
          Nasceu em Leopoldina, em  3 de fevereiro de 1889, onde também passou a infância, pobre, mas feliz, ao lado da mãe Mariana, senhora tradicional que se esmerou em educar os filhos, pois ficara viúva bem jovem.
         Funchal soube, com arte e elevado sentimento, fixar na tela motivos campesinos quer a “Cruz da Estrada”, quer um rio refletindo coqueiro e bambus dourados de luz.
        É o patrono da cadeira n. 12 da Academia Leopoldinense e Letras e Artes.
       Na Praça Félix Martins, encontra-se o seu famoso quadro reproduzido em azulejo, retratando a cena do Feijão Cru, lenda ou episódio da história leopoldinense.
         Era uma personalidade extraordinária, de notável visão universal dos problemas humanos, sociais e políticos.
          Tornou-se juntamente com o médico Irineu Lisboa, a dupla famosa dos carnavais da cidade durante quarenta anos. Desfilavam pelas ruas e clubes com fantasias de crítica social e política e se tornaram inesquecíveis por suas caracterizações carnavalescas. O último ano que saíram pelas ruas foi em 1978.
          Era uma pessoa predestinada e antes da operação lhe tirar a via, em 30 e junho de 1979, veio a Leopoldina despedir-se dos amigos e parentes, porque sentia que já estava chegando a hora da partida.
          Fora casado com Guiomar, já falecida, e deixou cinco filhos, vários netos e bisnetos.
          O prefeito Wilson Pimentel, em homenagem ao eminente leopoldinense, que soube engrandecer e honrar a terra natal com seu talento, decretou luto oficial por três dias.
          Em sua homenagem, há no bairro Bela Vista, em Leopoldina, uma rua com seu nome.
          Era amigo de Carlos Drummond de Andrade que dedicou a seu livro  Retalhos da Minha Vida  os versos:
                               São retalhos de uma vida
                               que não se parte a retalho
                               pois toda ela esculpida
                               na braúna e no carvalho.
        
        Para o poeta, Funchal poderia figurar num Dicionário e Homens do Bem e de Amor ao Brasil que, pela arte e pelo sentimento, honraram esta terra.
         O escritor não fez fortuna, apenas quadros e livros, mas deixou para a família o exemplo de uma vida digna.
          Pode-se dizer que esse homem ultrapassou o tempo, pois a sua alma sonhadora e artista canta e palpita em seus quadros porque soube fixar na tela não só paisagens do campo, mas também o caráter íntegro de homens pelos quais a Nação tanto clama.


Funchal em encontro festivo, possivelmente em Marechal Hermes





                    Fotos do interior da Casa de Funchal Garcia.
                                   Marechal Hermes







Óleo sobre tela - Rio Pomba
Acervo Rosangela Nogueira Garcia

Óleo sobre tela - Antiga estrada  que deu lugar a BR116
nas mediações do bairro Fortaleza
Acervo Rosangela Nogueira Garcia

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