LENDA DO FEIJÃO CRU E OUTRAS VERSÕES CRÍTICAS

                                                 
                     
Elias Abrahim Neto


                                                 OS PURIS





 Num dia desses, a pensar com meus botões, pus-me a imaginar se a lenda oficial do Feijão Cru não poderia ser diferente. Com tanta invencionice por aí, claro que pode, aí é que a ficção se confunde com a realidade.
Nossa história tem início por volta de 1556, quando “Sardinha” , o primeiro bispo, foi devorado pelos Caetés, sendo sucedido por “Leitão”, que não teve igual sorte e escapou do banquete eclesiástico do catequizado. E a antropofagia inspirou Oswald de Andrade.
     Os Puris, descendente dos Goitacazes que habitavam o norte fluminense, perseguidos pelos colonizadores portugueses e pelos botocudos, migram dessa região, vindo se assentar nas “ terras proibidas”, matas virgens que margeavam o Rio Pomba.
     Etimologicamente , segundo Deodoro Sampaio, a denominação Puri significa povo miúdo de baixa estatura. Tanto os Puris quando os Coroados são de uma mesma nação, pertencentes ao tronco linguístico Macro-Jê ou Tapuias, falavam com a garganta quase sem abrir a boca. Apesar da mesma etnia, os Coroados distinguiam-se dos Puris por serem mais fracos.
     Devido a atritos e guerras, os Puris eram chamados de bandidos. A partir do século XVI, quando houve a migração, os Puris que habitaram estas terras da Mata Mineira prevaleceram isolados por quase dois séculos, sem qualquer contato com os brancos, ou seja, com a civilização. Viviam em grupos, possuíam um líder escolhido por suas habilidades na arte da caça e da guerra. Também havia o curandeiro, que possuía conhecimentos fitoterápicos; como exemplo, para certos venenos de víboras utilizavam como antídoto a chamada raiz preta. Também exerciam a magia e cuidavam do espiritual.
     Nessa época, esses habitantes,os Puris, perambulavam pelas matas, nas terras “sem dono” do lado de cá do Pomba. Eram indígenas que viviam da caça, da pesca, da extração de mel (butan), de frutos silvestres , de tubérculos como mandioca brava( veijuh), de caratinga,de favas de mangalê ,de batata doce( churumûm) , de banana da terra(baoh), bebiam viru,um fermentado mastigado de milho( maki). Apreciavam muito a carne(arikê) de macaco barbado(tokeh), hoje quase extinto, cotia(bohkôn), paca(arotah),tatu(tutú) , peixes(nhamaquê), pássaros e moluscos.A carne, bem chamuscada,era assada na fogueira. Tinham medo do trovejar( tupan-ruhuhú). Os homens andavam totalmente nus, e as mulheres cobriam a genitália com uma espécie de saiote de sisal. Viviam em choças cobertas com folha de palmeiras e dormiam em redes e no chão forrado com folhas. Furavam as orelhas e lábios, pintavam o corpo com pigmentos vermelho(urucum), preto e azuis.Em círculos, dançavam a dança dos caboclos em que utilizavam um longo bastão, entoando cantos de exaltação.
Tinham como utensílios arco e flecha, potes de barros,cestas de taquara trançada, redes e outros apetrechos.
     Quando morria algum familiar, tinham o costume de devorá-lo para que os vermes não o fizessem, ou para que não apodrecessem sobre a terra. A carne humana, já disseram alguns, é como carne de vitela, tenra e macia como banana cozida; para outros, o sabor se assemelha ao da carne do porco, mas um pouco amarga.
      Defendiam bravamente seu território e sua cultura, mas não percebiam a ideia de propriedade privada. Em 1832 ,eram ainda numerosos por essas bandas.







                                                     AS TROPAS




     O tropeirismo tem início em 1695 com a instalação das Quintas na Vila de Taubaté. Segundo Tiago de Castro Braga, o tropeiro foi fundamental para o desenvolvimento econômico da Zona da Mata mineira, no século XIX, para o escoamento da produção agrícola para o abastecimento da corte . As tropas favoreceram o surgimento de pequenos comércios e alojamentos que lhes forneciam mercadorias básicas. Como conseqüência, houve a formação de povoamentos, vilas e cidades.
     As matas do leste, por não produzirem ouro, foram conservadas como barreiras naturais contra os descaminhos do precioso metal sendo chamadas, como já dito , de “terras proibidas”. Os Puris anteriormente citados , foram notados primeiramente pelos faiscadores retirantes das minas
em decadência.
     Os tropeiros, de mil e uma virtudes, devido a longas jornadas, guardavam muitos conhecimentos da cozinha, da medicina, do artesanato e outras habilidades. Eram homens de negócio, compravam e vendiam um pouco de tudo, traziam e levavam notícias e ideias . As tropas formavam-se por lote de 12 animais. Não havia mapas ou rotas, valiam-se da experiência.
     No comando das tropas tinha uma mula líder, madrinha, paramentada que portava o cincerro e anunciava a chegada das tropas. A dieta da tropa era composta de feijão, farinha de mandioca ou milho, toucinho de fumeiro, carne de sol, café, rapadura, tabaco e cachaça, que utilizada em dias frios contra constipação ou como alívio para picada de insetos. Entre os instrumentos e ferramentas que portavam, havia o freme (canivete) , puxavante, instrumento usado para aparar os cascos dos animais, pito para apertar o focinho do burro , holofote, uma lamparina rústica de bambu com chumaço de pano e querosene, esculateira(cafeteira), relho (chicote), ancorote(barril para cachaça), jacá(cesto sem tampa de taquara), cangalha(artefato de madeira e couro para acomodação da carga e toda a tralha, ou seja, toda a bagagem e peças de montaria, nas bruacas de couro cru). Ao chegarem ao local do pouso, que era escolhido sempre próximo a um riacho, logo tratavam de arriar as cangalhas e fincar estacas, que serviam para amarrar os animais e marcar a direção que seguiam. Nas horas de lazer sentavam-se em torno da fogueira, com a viola e a cachaça, para contação de causos.
     As propriedades rurais das Matas têm origem nas Sesmarias do início do século XVIII .
     O processo de colonização da Zona da Mata, denominada Sertão do Leste , iniciou quase que simultaneamente ao catequismo e pacificação dos índios, pois a mineração, atividade principal da capitania, encontrava-se em franco declínio. A cidade teve início a partir do pouso formado pelo caminho das tropas, uma vez que já existia atividade econômica agrícola.


                                          FEIJÃO CRU - O INICIO


Largo do Rosário
water colour sobre papel canson ,sem data
Elias Abrahim Neto

     Nas primeiras décadas de 1800, a tropa de um tal João Antônio da Silva (Careca) juntamente com outros aventureiros embrenham-se nestas matas abrindo picadas e caminhos onde apenas haviam veredas indígenas. Nessas investidas, em um de seus pousos próximo ao Pomba, num vale serpenteado por um ribeirão de águas claras que desciam das montanhas, vem aportar por estas paragens Antônio da Silva (Careca), o chefe da tropa. Depois de longa caminhada, param para um descanso em uma clareira. Apeados, descarregam as bugigangas, as cangalhas e fincam achas onde amarram os animais. Com o avançar das horas, tratam de se acomodar em abrigos, acendendo uma fogueira, para se aquecerem e se protegerem de feras e de animais peçonhentos. Na manhã seguinte, depois do café matinal preparado pelo cozinheiro da tropa, o “parvo” Zé Molenga atiçaria as brasas da fogueira sob o caldeirão de feijão acrescido de toucinho. Na curiosidade de vistoriar o local, começam a explorar, à procura de raízes e à caça de frutos silvestres.
      Sentindo presença estranha na mata, nativos se esgueiram, observam a movimentação dos brancos e se aproveitam da ausência desses, achegando-se curiosos ao acampamento, a bisbilhotar as bugigangas e objetos estranhos, pondo-se a furtar alimentos, cachaça e apetrechos. Antes de se evadirem da furtiva visita, jogam terra no lume e urina no caldeirão onde cozia a leguminosa do pasto.
     Regressando da andejada, e topam surpresos com a desordem das coisas, cismando com o repentino ataque selvagem. Como estavam famintos, procuram se servir do feijão e se surpreendem ao perceber que esse não serve para o consumo. Após essa constatação, Zé Molenga despeja o conteúdo do caldeirão nas margens do riacho.
      A partir desse fato, essa rota ou picada passaria ser conhecida como pouso do Feijão Cru. Dessa rota, as tropas se serviram com freqüência e, aos poucos, a região do sertão do leste vai sendo ocupada.
Foto Elias Abrahim Neto

Foto Elias Abrahim Neto

Foto Elias Abrahim Neto

Ponte sobre o ribeirão Feijão Cru.
Ao fundo seminário. Foto Elias Abrahim Neto


Fotos: Largo do Feijão Cru
Igreja Nossa Senhora do Rosário, provável local onde teve início o pouso e aldeamento , na formação da cidade.


                               





                               













 O SAGRADO É PROFANO


              Puri or not Puri – that is the question.

“A contradição não consente o arrependimento e o pecado ao mesmo tempo.”
Dante Alighieri – A Divina Comédia   



     Houve um tempo que estas terras eram consideradas proibidas, barreira natural da mata virgem, paraíso onde viviam os índios. Em 1825, a partir da rota traçada por aqueles tropeiros, pouco a pouco as terras vão sendo ocupadas, doadas em sesmarias (225 alqueires) ou apropriadas através da expansão de benfeitorias.
Ao centro o patriarca Pinheiro
Lacerda- Foto arquivo Almanaque Arrebol
     Primeiro habitante do Feijão Cru de que se tem notícia foi um tal de Peitudo,esquivo e furtivo, que caçava com armadilhas e era exímio na lida com armas de fogo, um foragido da lei ou talvez desertor da cavalaria que vivia em picadas da mata com uma jovem índia caçada por ele. Cultivava raízes, grãos e principalmente poaia * auxiliado por alguns índios mansos que lhe rendiam proventos, fruto do comércio com as tropas que abasteciam a corte.
     A política de concessão de sesmarias implantada pelo governo real visava a incentivar a ocupação de terras devolutas. Provavelmente, os primeiros a se beneficiarem dessa concessão foram os sesmeiros irmãos Fernando Afonso e Gerônimo Pinheiro Correa de Lacerda, que desistiram e delegaram poderes aos sobrinhos Francisco e Romão.
     Com a chegada de Marlière** à zona da Mata como comandante das divisões militares e encarregado da catequese dos índios, tem início a integração dos gentios aos costumes brancos, pacificando e mediando conflitos de terra.
     Um personagem que não pode se ausentar de nossa história é o lendário Padre Motta, o “Haranjúa Tajurú”, oriundo da nação Coroado; foi capturado com 8 anos de idade e adotado por um rico proprietário solteirão, Manoel da Motta, de 59 anos, possuidor de inúmeras lavras e mais de duas dezenas de escravos. Foi educado e iniciado desde cedo na doutrina cristã, onde foi batizado. Nos primeiros estudos teve como preceptor Manoel Caetano, que o introduziu nas regras sociais da civilização branca, ministrando-lhe aulas de gramática, aritmética e ciências.
      Desde cedo mostrou-se receptivo e com aptidão para assimilar o ensino que lhe era ministrado. Em 1779, contrariou a crença da restrição contida no estatuto de limpeza de “sangue infecto” que restringia o acesso de indígenas e pardos ao celibato. Depois de examinado em “Moral e Latim”, alcança a “ dispensa do neofitismo e da ilegitimidade ex defectu natalium”, sendo confirmada sua vocação para o celibato.
     Para que fossem cumpridas todas as formalidades exigidas para ser canonicamente ordenado presbítero do hábito de São Pedro, seu benfeitor contempla-o com a doação de uma fazenda com todas as benfeitorias, avaliada em dois mil cruzados e duzentos mil réis em 12 de julho de 1779, patrimônio - livro 55, p 32.
    Logo é enviado em missão de conversão e catequese dos índios Coroados e Puris na freguesia de São Manoel do Pomba, com o ofício de mestre escola, percebendo um ordenado de 140$000 anuais, que usa a favor dos patrícios. Tratou de mandar construir um sobrado para servir de escola, reformou a capela e instalou uma olaria, passando a ensinar a ler, escrever e contar. Para as meninas, prendas como coser, tecer, fiar e bordar. Durante os anos seguintes exerce com extrema dedicação a tarefa que lhe fora confiada.
     Numa bela, morna e preguiçosa manhã com cheiro de mato no ar, o Padre, entediado da vida mundana ,decide chutar o balde fedorento de excremento da civilização, mandando
seus superiores , até mesmo o bispo, às quintas, cansado que estava daquela vida fútil e superficial, da miopia das leis do homem, da hipocrisia da prática cristã, da caridade farisaica não gratuita, da corrupção ,da falta de ética, das propinas, da politicagem , da babação e da bajulação e da cobrança de mil e um tributos que escoavam pelo ralo da latrina fedorenta da sacristia. E tudo isso em nome de Deus,que nem desconfiava de tamanha podridão debaixo de seu nariz. Ainda por cima, no salão nobre da escola, haviam feito colocar, lado a lado, o retrato da Santíssima Trindade, outro do bispo, do juiz da comarca e do presidente da câmara( à época o cargo equivalia ao de prefeito). Ah! Me esqueci, do São Sebastião, martirizado pelas flechadas “puri-tanas”, tudo em óleo sobre tela emoldurados com folheados ao ouro, remanescentes das minas exauridas. Despoja-se de suas vestes e outras posses, rasga a batina rompendo com o “status quo” e, nu, adentra-se às matas ao encontro com a mãe natureza, indo viver com os seus, esposando várias índias adolescentes. Aí sim , brota no fundo do ser a verdadeira vocação,de ser livre, negando os valores que a civilização cristã lhe impôs, buscando a identidade que lhe fora roubada , sem pecados, culpas ou juízos; “ E até hoje ainda não se arrependeu”....


 * poaia – café
 ** Na concepção de Oiliam José, Marlière “ o civilizador”




                              HOLOCAUSTO – O EXPURGO.

                                  A peste de bexigas.


                    "Na história pátria os vilões são heróis".

      Um episódio que jamais poderá ser esquecido é o massacre dos Puris* que habitavam as proximidades do Paraíba, dizimados sem compaixão sob o pretexto de que eles saqueavam fazendas e hostilizavam seus habitantes, matando todos os que caíam em suas mãos.

      Por tal motivo, teria o Vice-Rei D. Luiz de Vasconcelos encarregado ao sargento-mor Joaquim Xavier Curado, que depois seria promovido a general e Conde de Duas Barras, que formasse uma tropa, arregimentada entre moradores e fazendeiros locais, para incursões que rechaçassem os índios. Porém, não se tem notícia de qualquer fato em que um Puri tivesse matado um branco e, quando acontecia algum encontro entre esses, os nativos fugiam não sem antes furtar as ferramentas dos brancos , para seu uso.
     Em sua narrativa o Vice-Rei não afirma explicitamente quais os meios empregados para eliminação dos indígenas, nem poderia, sob a pena de incorrer aos olhos da história como carniceiro, eximindo-se de qualquer barbárie, recomendando “prudência e moderação”, valendo-se de firmeza para “aterrar” os selvagens,ou seja, nenhuma medida foi levada a termo no sentido de impedir a disseminação da “peste de bexigas”. Segundo dicionário do início do século XIX, aterrar : causar terror, lançar a terra, derrocar (assolar, abater,arruinar).
     Para tal empreitada, Curado valeu-se do artifício de deixar roupas contaminadas com varíola, nas áreas onde viviam os Puris. Essa é a primeira vez de que se tem notícia do emprego desse dissimulado meio desleal, cruel e desonesto (em nosso tempo é caracterizado como crime de guerra, condenado pela convenção de Genebra).
     Para “desinfetar” os sertões, o que se viu foi uma verdadeira monstruosidade: míseros cadáveres boiando cotidianamente nas águas do Paraíba. Dessa forma, reduziu-se assim consideravelmente a população indígena daquele refúgio até a   quase total extinção, “ a solução final”.
    Engolidos e varridos que foram da história,pelo colonizador,a etnia Puri praticamente não existe mais. Perderam-se a identidade, as crenças, os costumes, a língua e a posse da terra, marginalizados pela ganância do capitalismo,pela sociedade em geral, deixaram como legado a denominação da terra onde habitavam,Serra dos Puris, como vestígio de sua passagem no empoeirado do tempo.
     Nas veredas das trilhas e picadas, asfalto. Hoje,os poucos remanescentes usam jeans, bebem coca-cola e comem sardinhas enlatadas. Trocaram as flechas por “torpedos” nos celulares, utilizam rede sociais.
     Atualmente, o que resta da nação Puri concentra-se em duas comunidades, Borré e Estouros, no parque Estadual da Serra dos Brigadeiros, Araponga, Minas Gerais, com população de 60 indivíduos, aguardando o pleito de definição por terra.
     Ideia desmiolada, só poderia partir de um político desmiolado;na história da pátria, os vilões são heróis. O deputado Leandro Villela, PMDB de Goiás, apresentou o projeto de lei 6917/06 em que inscreve o General Xavier Curado no livro dos heróis da pátria.

 Puri: gente mansa, tímida ou medrosa.

Comentários

Postagens mais Visitadas