AINDA ESTOU AQUI
Efêmero espetáculo da natureza, momento mágico do "arrebol ". Capturado no mirante Recanto do Sol Poético, próximo à minha casa. |
Faz exatamente três anos, nesta data carnavalesca, quando fui acometido por um acidente vascular.
Desde então venho tentando voltar à minha vida normal, venho
buscando, com relativo êxito, minha recuperação, me propondo desafios e me
ocupando de tarefas da antiga rotina, de novos afazeres, outros cuidados, além da
fisioterapia e de outras indicações médicas.
Hoje, considero como
mais um acidente, um trauma superado entre tantos, no percurso de minha
caminhada, um tropeço, mas tudo resolvido em minha cabeça.
Desde que me aposentei, venho tentando botar em ordem minhas
ideias, organizando os retalhos e rabiscos, desengavetando antigos projetos e
lidando com outros novos.
A esta altura da vida sei que o tempo que me resta é
escasso, raro e precioso, ou melhor, como disse Gullar: “a vida não basta" (seriam necessárias sete
vidas para quem tem boas mensagens, positivos e edificantes conteúdos para
expressar?).
E, é por isso que acho que a arte, manifestação necessária,
existe no homem e na natureza das coisas. É o que dá sentido à nossa
existência, conversa íntima que se externa, é a essência que dá substância a
nossa expressão.
Me identifico com a área das ciências humanas. Sou um amante
das artes, mais do que dos esportes, e posso dizer com humildade, modéstia e um
pouco de vaidade que, no terreno da criação, tenho boas ideias, me considero um
sujeito criativo. Apesar de profícuo nas ideias, também reconheço que sou pouco
prolífico, na verdade, preguiçoso, mas... deixa isso pra lá!
Sei apreciar a
criação ou invenção alheia, nunca penso em apropriar-me de outras ideias que
não as minhas, porque sei reconhecer o valor que tem a autenticidade da autoria.
Às vezes, não tenho hábito, mas, com o devido respeito e cautela, me arrisco em
uma releitura, dando outra roupagem a algum tema, ressignificando, acrescendo
conceitos e elementos novos, sob minha ótica pessoal.
Nossa página “almanaque
do arrebol.blogspot.com” tem sido acessada e consultada com frequência. Tenho
observado que várias citações, conceitos sobre temas e pautas de minha autoria
são inspiradores e fonte de pesquisa, sinal de que o conteúdo e as ideias são
boas.
Atualmente não tenho praticado a leitura, leio apenas sobre
assuntos que me ocupam no momento, e apenas trechos pertinentes ao meu
interesse ou à minha curiosidade.
Alguns meses atrás debrucei-me sobre alguns capítulos de
“Manual do Roteiro” por Syd Field, muito bom para quem quer ou precisa
desenvolver algum roteiro, onde pude aplicar alguns truques práticos em um
projeto, releitura de uma obra conhecida.
Nascido aqui nesta cidade, que aprendi a amar nos recantos
recônditos e em seus detalhes, foi aqui onde dei meus primeiros passos, onde
tive infância privilegiada por vivências e poéticos momentos mágicos,
melancólicos, quase oníricos.
A vida na pequena cidade que me viu crescer fervilhava nas
imediações das praças general Osório e Félix Martins, por onde cruzava o
terminal da linha férrea da Leopoldina.
Aqueles trilhos, com adjacências como artérias sanguíneas,
partiam para todas as direções; as pesadas chaves para trocas de direção
orientavam as manobras da velha e fantástica locomotiva a vapor, ciclópico
dragão negro de ferro, sedento engolidor de fogo e carvão, que chiava, apitava
e soltava tubos de uma fumaça cinza pela chaminé enquanto rubras brasas ígneas
saltavam da fornalha esparramando-se por entre as britas e pesados dormentes.
Quanto privilégio eu tenho ao poder lembrar-me de tudo isso,
quanta emoção! As caronas na rabeira daquela máquina incrível, a locomotiva
parecia que tinha vida, e tinha, fazia parte da minha vida e das pessoas que
frequentavam aquele lugar encantado!
Tempos longínquos, mas de memórias tão próximas!
A narrativa que se
segue não tem um padrão linear cronológico, é atemporal, as situações, pessoas
e coisas, atravessam um tempo paralelo, como se fossem flash de momentos.
A cidade mudava. Lugares
que não estão mais aqui, pessoas que também se foram no tempo não estão mais
aqui. Mas, as histórias ficaram...
A banca de revistas e jornais do sr. Francisco, imigrante
italiano, o primeiro álbum de figurinhas, se não me falha a lembrança, da Copa
do Mundo, o jogo do bafo, nos beirais de granito da estação. Floriano e seu
irmão Maó eram os mais solicitados carregadores de malas e bagagens, estavam
sempre de prontidão ali nas imediações e, claro, com as habituais indumentárias
cor cáqui e os inseparáveis quepes; O Hotel Gomes, que pertencia a meu avô, era
arrendado ao Juamiro Mendonça; no outro extremo defronte à praça, na esquina, o
hotel e bar Lamarca era a última construção, ao lado das Casas Barateiras e, no
piso superior, o hotel Palace que pertenciam aos gregos: Constantin Basile
Koravos, esposa Dimitra (a Pópis) que
depois mudaram-se para São Paulo onde adquiriram uma pequena indústria de
chocolates. Ao lado, a Farmácia Marialva, do Amaral. Em quase toda a extensão
frontal da praça Félix Martins, até onde é o ed. Rotary, hoje o calçadão, não
passava de um morro de bambuís, havia apenas uma edificação entre os extremos:
a oficina eletrônica do José Silva.
O dia se agitava bem cedinho, logo pela madrugada via-se o movimento de pesados caminhões usados no transporte de leite para a Cooperativa, ou Leiteria que, com as portas abertas já atendia à população.
Na esquina, circundando a praça, com sua imponente fachada, o belo prédio do Cine Brasil, em estilo art-déco; um pouco mais à frente a Vitaminas Brasil do Haroldo servia uma super gelada laranjada, sorvete de creme com ameixa e, um picolé de coco com pedaçudas lascas do fruto; posso sentir ainda esses sabores como se fossem ontem...; A Alfaiataria de Paulo Pacheco e Tunico, meu primeiro terno sob medida.
A improvisada rodoviária defronte à praça era apenas um
entreposto de vendas de passagens e apoio logístico, ao lado do Bar Rodoviário.
Não posso deixar de citar a via principal da cidade, a rua
Barão de Cotegipe, onde nasci, denominação que remonta ao tempo do império, das
lavouras de café, quando políticos locais conservadores resolveram homenagear o
escravocrata.
Mas deixando de lado o sombrio episódio, já citado em um
texto anterior, nessa Rua, que concentra
boa parte do comércio da cidade, principal via, em tempos passados praticava-se
o footing e por onde passavam desfiles cívicos e carnavalescos, passeatas,
procissões, enterros. Destaque-se o glamour, a beleza dos casarios que se
dispunham enfileirados aos oitis, que se harmonizavam uns com outros, casas com
fachadas de rebuscados ornamentos.
Detalhe da Rua Cotegipe: seus moradores, grande maioria
comerciantes, ostentavam o nome de seu comércio em um retângulo no passeio
defronte ao estabelecimento, grafados em ladrilhos hidráulicos, (produzidos artesanalmente
em oficina na paralela Rua Nova).
Descendo pela Rua Cotegipe, no sentido para a Prefeitura, à esquina da praça, a imponente casa bancária Ribeiro Junqueira, depois o prédio da Gazeta de Leopoldina (jornal e tipografia), a bela residência de Sebastião Nogueira, a casa comercial de meu avô Elias Abrahim,( outrora pista de patinação), com assoalho de tábuas corridas, vendia brim, gabardines, casemira, linhos importados, cambraias, sedas brocadas, tricolines, rendas, laises suíças, organdis, chitas e chitãos, lãs, calçados, luvas e meias, gravatas, cintos e suspensórios, boinas, chapéus de lebre e chapéus panamá, esses, na realidade, eram fabricados no Equador, peças íntimas Valisère, grande variedade de produtos e linha completa de armarinho; os estimados tios Totonho e Issa, eram caixeiros. Em 2015, meu irmão Henrique doou para a Casa de Cultura, uma bela vitrine, móvel que serve como expositor naquela Casa. Esse móvel pertenceu à loja de meu avô, mobília centenária, em bom estado, foi confeccionada em ipê amarelo pelo concorrido marceneiro João Campana. Algum tempo depois, em visita ao local, pude observar o descaso e má conservação, alguns reparos mal feitos, dobradiças à mostra, e calços de papelão nas portinholas. A vitrine e outros itens alí expostos, como o velho chafariz retirado da praça, no Alto das Tabocas, antigo nome do bairro Alto dos Pirineus, não possuem nenhuma referência de informações históricas, tampouco a procedência e nome do doador. Naquela mesma oportunidade também foram doados os balcões que compunham as instalações da loja, também em ipê, e se encontram até hoje abandonados e amontoados em um depósito da Prefeitura, em precário estado de conservação.
A pequena farmácia de Optato L. França, tio
Tatinho, meu padrinho, que possuía belíssima instalação com ornamentadas
estantes de vinhático onde uma escada com roldanas percorria o pequeno recinto
em toda extensão, permitindo o acesso às mercadorias; após sua aposentadoria,
foi vendida e, mais tarde, levada pra Niterói, Rio de Janeiro.
A papelaria do Moacyr, que também vendia
discos, a residência dos Lamoglia, a farmácia de Enéas L. França, onde seu irmão
Liliu trabalhava como farmacêutico prático. Ao lado da farmácia, o bar do
Marcelo Leite, lugar em que também se faziam apontamentos de jogo de bicho. Certa
vez, um apostador habitual, que fazia suas apostas diariamente, preencheu um
cheque para cobrir o valor de sua aposta. Quando teve ciência de que havia
acertado a milhar, logo tratou de ir receber o prêmio, ao abrir o pacote com o
dinheiro, ficou surpreso ao observar que seu cheque encontrava-se ali
contabilizado, logo tratou de devolvê-lo sob protestos de que não aceitava
aquele cheque.
A barbearia do Fizinho e Pacífico. O inesquecível fotógrafo
Andrade, depois ocupado por Mário Simões; recentemente, neste local foi construído
um belo prédio estilo neoclássico, pelo Dr. Sebastião Lacerda (Bazinho), que
foi quem também idealizou e custeou a estátua de bronze, em tamanho natural do Presidente
Carlos Luz, de quem era admirador, na Praça Félix Martins. O Alberto Cury, as
Casas Pernambucanas, as belas instalações da Joalheria São Francisco e a Ótica São
Geraldo de Francisco e Walter Rodrigues, o Laboratório Martinho Guimarães que fabricava o tônico infantil Eurovitam; alguém se lembra de seu slogan? No local também funcionava uma gráfica onde se imprimia o jornal “A ilustração”, de
Joaquim Guimarães, o Bazar Leopoldinense de Felipe Berbari era em frente à casa
Salomão Antônio dos primos Amélia, Pavão e Gambá.
No sobrado, onde era o Bazar Leopoldinense, posteriormente
passou a ser a residência do Sr. Negromonte. Ao fundo, no térreo, funcionava
pequena fábrica de sabão e sapólio. Seu filho Tarcísio era meu amigo, amigo do peito. Quando se
mudaram de Leopoldina, fiquei muito triste por perder o amigo. Nunca mais tive
notícias deles.
No início da Cotegipe, ali na praça Gal.Osório, a Casa
Raphael Domingues, sendo que nesse mesmo prédio funcionava a barbearia do
Oldemar Montenari, um puxadinho onde se vendiam livros espíritas e, bancas de engraxates.
Logo na esquina, o solar Tambasco, no térreo do sobrado, o consultório do
dentista Pery Tambasco; o Bazar Renê, a loja de eletrodomésticos do Otávio
Guedes, que também vendia gás de cozinha; o prédio do Cleber Leitão abrigava no
térreo a Coletoria Federal; o sobrado estilo germânico do tabelião Lauro Guimarães;
mais à frente a velha venda dos irmãos
judeus Elí Balabran, o educandário São José, das irmãs Judith e Calíope Lintz.
Entre o imóvel onde se instalava o Andrade e a Pequena loja do Alberto Cury, uma simpática varanda com gradil de ferro fundido dava acesso à casa de D. Iomar (sinhá) e Loloti, pais do Floriano e Maó.
Maó (assim se autointitulava, referindo-se a “Major” que se dizia ser),recolhia papeis pelo chão e fazia montinhos nos cantos das sarjetas, para depois queimá-los, dizendo que tinha autoridade para tal porque era “Maó”.
Mais abaixo, na esquina, da Travessa Dom Pedro, de um lado a
papelaria e foto do mestre Cézar Rolly, na outra esquina, a casa comercial de
Antônio Abraão e Succar Mussi, (mais conhecida como Sra. Minas Gerais) pais de
Alice, Maria, Helena, Antônio Pequeno (Jacaré) Jamili (minha avó) e Dr. Abraão Chede, promotor
adjunto, que, às tardes, habitualmente, encontrava-se sentado à esquina, dando
baforadas em seu cigarro preparado com diversos tipos de tabaco e enrolados em palha,
que, seguindo recomendações médicas para que se afastasse do fumo do tabaco,
justificando-se que fazia uso de uma longa e elegante piteira para não contrariar aquelas recomendações, uma
inocente artimanha para aliviar a culpa.
O boteco Dama’s do Cleber, que funcionava nas madrugadas e
servia ovos coloridos. O Baiano relojoeiro. O majestoso Cine Allencar, a
icônica torrinha, entretenimento e atrações ante o tédio da vida pacata, o
consultório do Dr. Joaquim Pinto. Depois a residência e loja de Elias Salomão,
dirigida pelo primo Brahim, o bar e sorveteria Americana do Sr. Orlando Leite
também mantinha nos fundos mesas de sinuca; e, na esquina com a rua Tiradentes,
de um lado a luxuosa Casa Felipe, e do outro lado, a Alfaiataria Ducal, dos
Gesualdi.
Defronte à luxuosa Casa Felipe, no térreo do velho sobrado,
um lote antes do escadão, o sr. Leopoldo também fazia um delicioso picolé.
Mais à frente, o chalé onde morou Augusto dos Anjos era apenas uma moradia anônima; a Casa de Ferragens e quinquilharias do sr. Odilon Barbosa, onde se achava de tudo e mais um pouco. Nesse trecho da rua, próximo à Prefeitura, pelo lado esquerdo, não havia ainda nenhuma edificação, apenas na esquina a Companhia Telefônica com suas cabines, onde se aguardava dez, quinze , até trinta minutos para que a telefonista conseguisse completar sua chamada.
A amiga Neuzinha Gomes me vem à lembrança ao citar esses
nomes, estabelecimentos e lugares, pois Neuzinha é uma verdadeira enciclopédia
no quesito denominações de personagens que compõem a memória também afetiva da
cidade.
Na atual administração, diga-se de passagem uma ótima
gestão, “sem parâmetros com as recentes gestões anteriores”, tem-se confundido
o asfaltamento de nossas vias públicas com progresso; é um equívoco cobrir o
belo e romântico calçamento de paralelepípedos lavrados em pedra, polidos pelo
tempo de uso, além de outros fatores de objetivos pragmáticos.
Já pensaram como seria a nossa rua Cotegipe asfaltada e com bocas
de lobo e bueiros entupidos, também por descaso de outros gestores?
Isso por si só já poderia
ser tema de uma crônica, a evolução a transformação, a decadência de um lugar,
ou como alguns queiram: ”o progresso”, mas isso já é para outro texto, outro
assunto.
Belas e
felizes memórias!
Mas...não estão mais
aqui. Eu ainda estou aqui...
Não quero aqui tratar só das coisas e pessoas que não estão
mais aqui, mas daquilo que me marcou, influiu de alguma forma em minha
formação, que me moldou, que estimulou minha percepção das coisas do mundo.
Por isso não posso deixar de resgatar esse período da
infância, esse mundo de antiguidade ancestral e remota, nem das coisas e
pessoas que não estão mais aqui.
AINDA ESTOU AQUI
arrebatou o histórico e inédito prêmio da academia Hollywoodiana neste 2025,
mas, por aqui entre nós, muitos prêmios de reconhecimento deveriam ser dados a
cidadãos que produzem conteúdo edificante ou se destacam de alguma maneira ou
em alguns setores na vida social e cultural da cidade.
Ou iremos aguardar a sua partida de nosso convívio para
prestar-lhes póstumas homenagens? Como exemplos: Vitalino Duarte, Raphael D.
Rosa, Serginho do Rock ...
Outros tantos, esquecidos, também merecem deferências e
homenagens por seus méritos e altruísmo; entre tantos Eunice Souza, mulher
preta, merece ser lembrada, já houve até quem a depreciasse e a destratasse,
segundo seu próprio relato em entrevista a mim concedida. Enfim, Eunice Souza nem
chegou a desfrutar do descanso no acolhimento da casa que foi uma das razões de
sua luta, o Asilo Sto. Antônio.
Qualquer coincidência
ou semelhança é mera intenção.
Abaixo, “Ainda estou
aqui” é o recorte de texto escrito por mim e postado em 20 de março de 2022,
após sofrer um acidente vascular:
Na medida certa,
Sem hora extra.
Viver naturalmente minha
fragilidade,
Minha condição humana.
E, quando minha estrela se
apagar,
No ponto final de minha existência,
Certamente um novo parágrafo
será escrito.
Pois,
AINDA ESTOU AQUI” ...
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