O CALDEIRÃO DE CONJUÇÕES ... e um certo tempo de saudade









                                O CALDEIRÃO DE CONJUÇÕES
                                                        ... e um certo tempo de saudade

Houve um tempo em que nestas terras do Hemisfério Sul, os senhores absolutos eram os Puris, que viviam de extração e alguns cultivos, em perfeita harmonia com a natureza. Viviam com sua liturgia, acima do bem e do mal, nos limites entre o céu e a terra. Então, bem antes que o café com leite chegasse às mesas matinais do lugar, veio a civilização europeia, consumando o etnocídio num verdadeiro banquete antropofágico, devorando a inocência, os costumes, línguas e rituais, as crenças da nação “inferior”, até quase a total extinção...“e assim caminha  a humanidade.” Aí, num dia desses qualquer, as tropas passaram por aqui,descarregaram as mulas para o pasto e descansaram à beira de um ribeirão de águas cristalinas. Surgiu a Lenda do Feijão Cru.

Terras foram apropriadas para a construção de uma capela, onde foi rezada a  provável 1ª  missa oficial, o marco zero,o que deu início à formação do povoamento e da cidade. Surgem o Largo do Rosário e seus arrabaldes. Desde então, muita água rolou debaixo da ponte, localizada nas imediações. A Igreja da Paróquia do Rosário, antes igreja matriz, com o decorrer do tempo foi perdendo suas características originais; em seu entorno  edificações surgiram, melhoramentos foram sendo realizados, até que, recentemente, na década de  1960, foi alterada em seu belo interior; o altar foi descaracterizado, sendo suprimido o esplêndido entalhe folheado, obra do escultor espanhol Buena Flor(1847- 1920).

Certo pároco, mais tarde desligado de seus votos e de suas funções eclesiásticas, foi o autor dessa infeliz ideia, desse ato desinteligente, concluindo a obra que os cupins haviam iniciado. Desde então muita água vem rolando  debaixo da ponte, que dá acesso  para o Seminário: fantasmas, audições da banda, comícios, modas, desconstruções, revoluções e paixões.

No mês de maio, mariano festivo, realizavam-se batizados, casamentos e coroações, em tempos em que as noites ainda eram frias. Agasalhados por jaquetas xadrezes de lã, com golas de pelos e astracam, as pessoas eram aquecidas pelo chocolate quente, servido nas quermesses. Nas barraquinhas da sorte, os coelhinhos, na realidade travestidos em pele de porquinhos-da-índia, assustados com a algazarra no entorno, procuravam se esconder em uma das casinhas numeradas. Havia  também o mágico aviãozinho monomotor que, após movimentos circulares, aterrissava na pista numerada , em que o número equivalia a uma prenda.

No alto-falante eram anunciados recadinhos amorosos, do rapaz assanhado para a moça acanhada da “blusa azul”. Nos dedos, esses rapazes normalmente ostentavam anéis, chamados brucutus, confeccionados a partir dos “besouros” que esguichavam água, surrupiados dos  para-brisas dos fusquinhas. As canções de harmonia “quadrada”, e letras simples e românticas, influenciadas pelos ventos de Liverpool, invadiam as rádios das Américas. Enquanto nos rapazes as cabeleiras cobriam as orelhas, as moças ostentavam os rabos de cavalo com laços de fitas, com certa ousadia em suas saias pregueadas na altura dos joelhos.  Um tempo de saudade.

Hoje com um projeto de revitalização, os caciques  da atual administração, procurando se adequar  às novas exigências de mobilidade urbana, oferecendo vagas para veículos, deu uma  repaginada no Largo do Rosário. Será que novos problemas vão surgir?A fiscalização funcionará efetivamente?Haverá respeito na utilização  dessas vagas?

Apesar da desigualdade social e da crise moral de nossos tempos, quiçá possamos saciar a fome de nossa gente com um nutritivo feijão cultural, temperado com solidariedade  respeitando o pluralismo e as diferenças,  servido no grande caldeirão  numa conjunção de todas as raças que compõem nossa etnia  e constituem nossa gente. Quem sabe, antes que a poeira da história se dissipe no tempo, possamos vislumbrar um “admirável mundo novo”, pois não é proibido sonhar,abraçando a proposição de relembrar e reverenciar o início disso tudo, os pioneiros habitantes desta terra, a nação Puri. A lembrança dos Puris é uma forma de reconhecer que, num determinado tempo, foram eles os legítimos donos do Feijão Cru . Fica então a sugestão de um memorial, a exemplo de nossa capital BH, com as suas ruas centrais projetadas e batizadas com nomes das várias nações indígenas.

Para aprazer aos pedestres e usuários, fica também a sugestão de arborizar a praça com espécimes da vegetação original nativa, como exemplos os majestosos ipês de colorações diversas, que, anunciando a primavera,  despem-se de suas folhas e explodem em floração numa bela celebração da natureza.

Afinal queremos um lugar mais justo e melhor para viver, com boa vontade: educação , saúde, lazer e um saboroso feijão amigo para todos.



Elias Abrahim Neto


                               

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